segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

O caso dos negativos perdidos de Robert Capa

Milhares de negativos de fotos que Capa, um dos pioneiros da moderna fotografia de guerra, tirou durante a Guerra Civil Espanhola são devolvidos após ficaram escondidos durante mais de meio século.

Do The New York Times

Para o pequeno grupo de especialistas em fotografia que sabem de sua existência, o caso era conhecido simplesmente como "a valise mexicana." E no panteão dos modernos tesouros culturais perdidos, era cercado pela mesma aura mítica dos primeiros manuscritos de Hemingway, que desaparecerem de uma estação ferroviária em 1922.



A valise - na realidade, três frágeis maletas de papelão - continha milhares de negativos de fotos que Robert Capa, um dos pioneiros da moderna fotografia de guerra, tirou durante a Guerra Civil Espanhola ante de fugir da Europa para os Estados Unidos em 1939, deixando para trás os trabalhos em sua câmera escura de Paris.

Capa pensou que o trabalho tinha sido perdido durante a invasão dos nazistas, e morreu em 1954, em trabalho no Vietnã, ainda acreditando nisso. Mas em 1995 começou a circular a versão de que os negativos haviam escapado, depois de uma jornada digna de um romance de John le Carre: de Paris para Marselha e depois, nas mãos de um general e diplomata mexicano que havia prestado serviço a Pancho Villa, para a Cidade do México.



E lá os negativos ficaram escondidos durante mais de meio século, até o mês passado, quando fizeram aquela que pode ser sua viagem final, para o Centro Internacional de Fotografia de Manhattan, fundado pelo irmão de Robert Capa, Cornell. Anos depois de negociações silenciosas, intermitentes, sobre qual seria sua verdadeira casa, a posse legal sobre os negativos foi transferida recentemente ao espólio Capa pelos descendentes do general, incluindo um cineasta mexicano que os viu pela primeira vez na década de 1990 e logo percebeu a importância história do material em poder de sua família.

"Esse é realmente o Santo Graal do trabalho de Capa", disse Brian Wallis, principal curador do centro, acrescentando que além dos negativos de Capa, descobriu-se que as caixas, rachadas, cobertas de poeira, também continham imagens da Guerra Civil Espanhola tiradas por Gerda Taro, a parceira profissional e durante algum tempo, pessoal, de Robert Capa e por David Seymour, conhecido como Chim, que ajudou a fundar a influente agência Magnum de fotografia com Capa.

A descoberta gerou comoção em todo o mundo da fotografia, no mínimo porque se espera que os negativos possam estabelecer, de uma vez por todas uma dúvida que persiste sobre o legado de Capa: se é possível que sua foto mais famosa - e uma das fotos de guerra mais famosas em todos os tempos - foi encenada. Conhecida como "A morte do soldado republicano", ela mostra um miliciano legalista caindo para trás no que parece ser o instante em que uma bala atinge seu peito ou cabeça em uma colina perto de Córdoba em 1936. Quando a foto foi publicada pela primeira vez na revista francesa Vu, causou sensação e ajudou a cristalizar o apoio à causa republicana.



Embora o biógrafo de Capa, Richard Whelan, tenha defendido enfaticamente que a foto não é uma invenção, as dúvidas persistiram. Em parte porque nem Capa nem Taro fizeram questão de manter isenção jornalística durante a guerra - eles eram comunistas partidários da causa republicana - e conhecidos por fotografar manobras encenadas, uma prática usual na época. Jamais se descobriu o negativo da foto (ela tem sido há muito tempo reproduzida a partir de uma impressão antiga), e a descoberta de algum negativo, especialmente na seqüência original, mostrando todas as fotos tiradas antes e depois do tiro, pode encerrar o debate.

O fotógrafo

Mas a descoberta está sendo saudada como um enorme acontecimento por motivos que vão além de questões de medicina legal. Esse é o trabalho formador de um fotógrafo que, num século definido pelos conflitos armados, exerceu um papel crucial da definição de como a guerra foi vista, trazendo seus horrores para mais perto que nunca - "Se suas fotos não são boas o suficiente, você não está perto o suficiente" era seu mantra - embora no processo elas ganhassem um tom mais cinematográfico e fictício. (Capa, como não é de se surpreender, mais tarde prestou serviço de free lance em Hollywood, ficando amigo de diretores como Howard Hawks e cortejando Ingrid Bergman).



Capa praticamente inventou a imagem do fotógrafo de guerra globe-trotter, com um cigarro pendendo do canto da boca e câmeras penduradas em seu colete. Seu espírito intrépido inspirava respeito até mesmo aos soldados que eram o seu tema, e entre batalhas ele saia com Hemingway e Steinbeck e geralmente bebia demais, parecendo fazer tudo com ostentação. William Saroyan escreveu que achava Capa "um jogador de pôquer cujo hobby era fotografar."

De uma forma "warholiana" isso parece apenas aumentar seu fascínio contemporâneo, e além disso ele de certa forma inventou a si mesmo. Nascido Endre Friedmann, na Hungria, ele e Taro, que conheceu em Paris, criaram a personagem Robert Capa - eles o chamavam de "um famoso fotógrafo norte-americano" - para ajudar a conseguir trabalhos. Ele então incorporou a ficção e tornou-a realidade. (Taro, uma alemã cujo nome real era Gerta Pohorylle, morreu na Espanha em 1937 em um acidente com um tanque, enquanto fotografava.)

Os negativos

Curadores do Centro de Fotografia, que iniciaram um programa de dois meses de duração para conservar e catalogar a obra descoberta recentemente, dizem que a história toda de como os negativos, cerca de 3.500, chegaram do México, pode jamais vir a ser conhecida.

Em 1995, Jarald R. Green, professor no Queens College, parte da City University de Nova York, recebeu uma carta de um cineasta da Cidade do México que havia acabado de ver uma exposição de fotos da Guerra Civil Espanhola, patrocinada em parte pela faculdade. Ele escreveu que recentemente recebera um arquivo com negativos em nitrato que eram de sua tia e herdados do pai dela, general Francisco Aguilar Gonzalez. O general fora destacado como diplomata no final de década de 1930 para Marselha, onde o governo mexicano, defensor da causa republicana, começou a ajudar refugiados antifascistas da Espanha a imigrar para o México.



Do que os especialistas conseguiram juntar de arquivos e a pesquisa de Whelan, o biógrafo (que morreu no ano passado), Capa aparentemente pediu ao gerente de sua sala de revelação, um amigo e fotógrafo húngaro chamado Imre Weiz, conhecido como Cziki, para salvar seus negativos em 1939 ou 1940, quando Capa estava em Nova York e temia que seu trabalho pudesse ser destruído.

Acredita-se que Weisz tenha levado as maletas para Marselha, mas foi preso e enviado para um campo de prisioneiros em Argel. Em algum ponto os arquivos foram parar com Aguilar Gonzáles, que os levou para o México, onde morreu em 1967. Não está claro se o general sabia quem havia levado as fotos ou o que elas mostravam; mas se sabia, parece que jamais tentou entrar em contato com Capa ou Weisz, que coincidentemente morou o resto de sua vida na Cidade do México, onde casou com a pintora surrealista Leonora Carrington. (Weisz morreu recentemente, com 90 anos; Whelan o entrevistou para sua biografia de 1985 de Capa mas não acrescentou qualquer informação sobre os negativos perdidos.)

"Em retrospectiva, parece estranho que não tenham sido feitos esforços para localizar essas coisas," disse Wallis. "Mas eu acho que eles simplesmente desistiram. Eles teriam sido perdidos na guerra, como tantas outras coisas." Quando o centro de fotografia ficou sabendo que a obra poderia existir, entrou em contato com o cineasta mexicano e pediu a sua devolução.

Mas as negociações por carta e telefonemas não trouxeram nenhum compromisso, disse Philip S.Block, vice-diretor para programas do centro, que acrescentou que outros não tinham nem certeza de que as alegações do cineasta eram verdadeiras, porque ninguém havia mostrado os negativos. (Dizendo que a devolução dos negativos era uma decisão coletiva da família Aguilar Gonzáles, o cineasta pediu para não ser identificado nessa reportagem e recusou-se a ser entrevistado.)



Foram marcadas reuniões com o homem, mas ele não compareceu. "Então, houve uma ruptura total nas comunicações, sabe-se lá por qual razão," disse Block. Iniciativas para restabelecimento de contato foram tomadas, de tempos em tempos, sem sucesso. Mas quando o centro começou a organizar novas exposições das fotos de guerra de Capa e Taro, inauguradas em setembro, ele decidiu tentar de novo, na esperança de que as imagens dos primeiros negativos pudessem ser incorporadas às mostras.

"Ele nunca pediu dinheiro," disse Wallis sobre o cineasta. "Ele simplesmente parecia querer garantir que os negativos fossem para o lugar certo."

Frustrado, o centro recorreu à ajuda de uma curadora e de estudiosa, Trisha Ziff, que mora na Cidade do México há muitos anos. Depois de trabalhar várias semanas, apenas para localizar o homem recluso, ela iniciou o que acabou sendo quase um ano de discussões sobre os negativos.

"Não é que ele não conseguia se desfazer deles," disse Ziff, em uma entrevista por telefone, de Los Angeles, onde está complementando um documentário sobre a imagem mais divulgada de Che Guevara, com base em uma fotografia de Alberto Korda.

"Acho que é porque ninguém, antes de mim havia dado tanta importância a isso, uma vez que algo tão delicado precisa ser tratado de forma importante," ela disse. O cineasta temia em parte que as pessoas no México pudessem criticar o envio dos negativos para os Estados Unidos, considerando as imagens como parte da profunda conexão histórica de seu país com a Guerra Civil Espanhola. "Era preciso respeitar e admirar o dilema enfrentado por ele," ela disse.



No final Ziff convenceu-o a transferir a obra - "acredito que posso ser definida como uma pessoa obstinada," ela disse - ao mesmo tempo em que também garantiu uma promessa da parte do centro de fotografia, de permitir que o cineasta use imagens de Capa para um documentário que gostaria de fazer sobre a sobrevivência dos negativos, a jornada até o México e o papel de sua família de preservá-los.

"Eu o encontro com bastante regularidade," disse Ziff, "e acho que ele está em paz a respeito disso agora."

Em dezembro, depois de duas entregas antecipadas de boa-fé de pequenas quantidades de negativos, o cineasta finalmente entregou a Ziff a maior parte da obra, e ela a transportou pessoalmente, em um vôo para Nova York.

"Eu não ia colocar o material em uma caixa da FedEx," ela disse.

"Quando recebi as caixas, quase senti como se elas estivessem vibrando em minhas mãos," ela acrescentou. "Essa foi a parte mais fantástica para mim."

Preciosidades

Wallis disse que enquanto especialistas em conservação, da George Eastman House em Rochester, N.Y., só agora começam a avaliar as condições, os negativos parecem estar notavelmente bons para um filme de nitrato de 70 anos de idade, armazenado no que essencialmente se parece com caixas de confeitos.



"Parece que os negativos foram feitos ontem," ela disse. "Não estão nada frágeis. Eles estão muito novos. Nós só demos uma olhada cuidadosa em alguns deles, só para ter a noção do que há em cada rolo."

E já existem descobertas surgindo das caixas - uma vermelha, outra verde e uma bege- cujo conteúdo parece ter sido cuidadosamente etiquetado em tabelas desenhadas à mão feitas por Weisz ou outro assistente do estúdio. Pesquisadores já se depararam com fotos de Hemingway e de Federico Garcia Lorca.

O negativo de uma das mais famosas fotografias de Chim da Guerra Civil Espanhola, mostrando uma mulher amamentando um bebê em seus braços enquanto olha para cima, acompanhando um discurso, numa concentração de massa em 1936, também foi encontrado. "Ficamos admirados em ver isso," disse Wallia. (A fotografia, geralmente exibida como uma mulher que olha preocupada para o céu em busca de bombardeiros, foi mencionada por Susan Sontag em "Diante da Dor dos Outros", uma revisão de idéias a partir de seu tratado bastante conhecido, "Sobre Fotografia," o exame crítico das imagens de dor e sofrimento.)

A pesquisa poderá provocar uma reavaliação da obscura carreira de Taro, uma das primeiras mulheres fotógrafas de guerra, e pode levar à conclusão de que algumas das fotos atribuídas a Capa são na realidade, dela. Os dois trabalhavam juntos e rotularam alguns de seus primeiros trabalhos sob o mesmo crédito, às vezes tornando difícil estabelecer conclusivamente de quem era a autoria, disse Wallis. Ele acrescentou que existe até mesmo a remota possibilidade de que "A morte do soldado republicano" seja de Taro e não de Capa.

"Essa é uma outra teoria que surgiu",ele disse. "Nós não sabemos ainda. Para mim, isso é que torna tão extraordinário esse material. Existem tantas dúvidas e tantas questões que sequer surgiram, e que os negativos podem responder."

No final, disse Wallis, a descoberta é significativa porque é a matéria-prima do nascimento da própria moderna fotografia de guerra.



"Capa estabeleceu o modo e o método de descrever a guerra nessas fotografias, colocando o fotógrafo não como um observador, mas estando na batalha, e isso se tornou o padrão que o público e os editores exigem a partir de então," ele disse. "Qualquer outra coisa, parece que o fotógrafo está apenas como observador. E aquela revolução visual que ele encarna aconteceu exatamente ali, naquelas primeiras fotos."

Fotos publicadas no The New York Times.
Tradução do UOL Mídia Global.
Edição do Blog da Foto.

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1 Comments:

At 11:54 PM, Blogger felipe weber said...

Sr. Otacílio: Seu Blog da foto é muito bom - diria gostoso de navegar. essa história do Capa, me fez procurar novamente seu Blog pois não conseguira lê-la na íntegra.

continue produzindo-o.
parabńes

 

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